O primeiro semestre está acabando, e o jovem no ensino médio só pensa: e o ENEM? A data está marcada, os cadernos já estão gastos, e o nervosismo cresce. Mas, apesar de parecer uma prova comum para todos, o ENEM não é o mesmo para quem vem da classe média alta e para quem atravessa os corredores apertados da escola pública da periferia.
Para este último, o ENEM é quase uma guerra. Uma batalha silenciosa entre o desejo de estudar e as urgências do cotidiano: as facções que dominam os territórios, o transporte precário, a insegurança pública e a instabilidade financeira que adoece mentes jovens antes mesmo que possam sonhar com o futuro.
Enquanto estudantes das melhores escolas particulares somam cursinhos, simulações, apoio psicológico, intercâmbios e tempo para planejar suas vidas, o jovem periférico precisa sobreviver — e disputar uma vaga dentro do sistema de cotas. E mesmo assim, ainda escuta que “teve vantagem”.
Meritocracia seletiva
Essa crítica, repetida em tom de desprezo ou disfarçada de "justiça", revela muito mais sobre a manutenção dos privilégios do que sobre o mérito em si. A ideia de que cotistas “têm vantagem” nasce de um imaginário social meritocrático, que desconsidera o peso das desigualdades históricas e estruturais no Brasil. A elite brasileira naturalizou o próprio privilégio e passou a chamar isso de mérito — como se todos tivessem começado da mesma linha de largada.
Pior ainda: pressupõe que a universidade pública deve ser reservada aos que tiveram alto desempenho no vestibular, ignorando que nem todos tiveram as mesmas condições de preparação. A exclusão de negros, indígenas e pobres do ensino superior é produto de uma longa história de marginalização — e as cotas são uma resposta política, não um privilégio.
Além disso, estudantes cotistas não apenas ingressam, como concluem seus cursos com desempenho similar — e muitas vezes superior — ao de estudantes não cotistas. Portanto, o argumento da “vantagem” se sustenta apenas no racismo estrutural e no desprezo à justiça social.
Quando o sonho vira necessidade
Essa desigualdade se expressa com força também na escolha profissional. Para jovens da elite, escolher uma carreira envolve tempo, reflexão, viagens, liberdade para experimentar — e errar. Para os jovens da periferia, a escolha é atravessada pela urgência: qual curso oferece maior chance de emprego? Qual é gratuito? Qual está mais perto de casa? Qual pode ajudar a sustentar a família o mais rápido possível?
Nem sempre é sobre vocação. Muitas vezes é sobre sobrevivência. Isso diz muito sobre quem pode sonhar livremente e quem precisa, primeiro, garantir o básico.
O que o tempo me ensinou
Lembro da minha própria trajetória. Em 1989, no Colégio das Irmãs, havia apenas duas meninas negras na sala. No ensino médio, a ausência seguiu. Troquei de escola três vezes em Teresina e não me lembro de colegas negros próximos. Eu era uma menina branca, cis, de classe média baixa. E eu não percebia essa ausência. Nos anos 1990 e 2000, não se falava sobre isso. Era invisível porque era considerado “normal”.
Na faculdade, mais uma vez, uma turma majoritariamente branca. Com o tempo, descobri que havia duas mulheres negras ali. Mas também havia o silêncio, o cabelo alisado, a tentativa de se encaixar. Um apagamento cotidiano que só se revela depois, com o tempo, com os livros, com as vivências.
Potência periférica
Apesar disso tudo, há esperanças reais. Jovens periféricos estão ocupando espaços. Estão passando nos vestibulares, entrando nas universidades, debatendo política, escrevendo livros, apresentando trabalhos científicos, rompendo com o destino imposto. E isso não é milagre — é fruto de políticas públicas, de mães insistentes, de cursinhos populares, de professores que acreditam, de coletivos e de redes de solidariedade que florescem onde o Estado não chega.
A crítica é direta: enquanto o acesso à educação e a escolha profissional continuarem dependendo do CEP e da cor da pele, o Brasil seguirá desperdiçando talentos. O país que não investe na juventude periférica não é apenas injusto — é burro. Estamos falando de inteligência, potência criativa e capacidade de transformação social.
É urgente garantir políticas de permanência, incentivo ao ensino técnico e superior, inclusão digital e ações afirmativas com acompanhamento sério. É urgente garantir o direito de sonhar.
Porque o ENEM não é só uma prova. Para muitos, é a única saída.